Recordar é viver
Chegados dias de afastamento dos raios solares de verão, em tempo de aproximação à época outonal, caiem sobre nós já alguns efeitos de transição ao Outono da vida, numa retrospetiva existencial, quando se dá um reencontro de experiências outrora comuns, com o convívio de antigos seminaristas - jovens de há umas dezenas de anos atrás e agora homens de semblantes grisalhos. Vindo à ideia um sopro de recordações, em tal período de transposição temporal, quais folhas a esvoaçar no horizonte que se vai pondo atrás da linha do tempo, como folhas caídas nesta estação d' ano.
Para não abusar aqui do espaço e mais ainda da paciência de antigos colegas, recuamos apenas num fugaz vislumbre a uma época que povoou nosso ser. Naquele mundo com alma que em determinada fase da vida nos preencheu intimamente.
Eis assim o pensamento a voar até Gondomar, portões adentro e, como pássaro da memória a pousar num ramo das árvores beirantes ao antigo edifício seráfico. Assomara saudação de passagem ao Padre Vítor, que nos acolheu nos primeiros tempos, a meio dos anos sessentas, mas a vida continuara. Porém, nos momentos a revisitar, ainda se mantinha de pé a ala da direita do edifício, embora desativado o velho dormitório por cima da capela. Haviam passado os jovens estudantes a dormir do outro lado, naquele anexo com entrada pelo lado dos balneários e do tanque. Num ambiente cujas feições sentimos já diluídas na retina, mas com algo sempre presente. Foi aí, já, que numa madrugada fria de inverno, corria Fevereiro de 1969, todos sentimos o famoso terramoto que atingiu elevado grau na escala respetiva. Ao primeiro sinal de alarme, ouvindo tilintar contra os ferros das camas as placas de folheta com os números de cada qual, pendentes nas cabeceiras, todos desataram a correr porta fora, sem olhar a nada nem ninguém, num ver se te avias até mais não... Sendo então que um amigo nosso, na pressa e sem olhar a nada, deu de caras com a cabeça na armação da porta de saída, com estrondo. Na algazarra imediata, parecia que outro abalo acontecera. E, apinhados uns contra os outros, os pequenoos alunos que ali ainda restavam, quedaram-se atónitos sem saber se haviam de continuar ou ficar, ante a dúvida do que teria mais acontecido e qual o maior perigo, afinal... até que fomos sacudidos pela chamada de atenção de alguém preocupado, e então todos rumamos enfim a porto seguro, à proteção do frei Domingos...
Era esse frei, in illo tempore, um simpático personagem que, desde que mudamos de poiso noturno, ficou a dormir no mesmo amplo dormitório, com um biombo apenas a servir de separação e a manter respeito.
Detendo assim ele, então, posição de encarregado e vigilante.
Enquanto, nas horas de recreio e passeatas, mantinha com os rapazes um fraterno convívio. E mais, com o autor destas linhas, por acaso, até manifestava simpatia e amizade (analisando à distância, vendo que ele mais tarde rumou a uma ordem contemplativa), talvez, naquele tempo também, por sermos ambos de certo modo discretos e reservados, de poucas palavras mandadas fora da boca.
Ora o Frei Domingos Borges, de careca à mostra acima do capuz do hábito, enquanto nos fazia companhia de passar tempo, nesse ínterim em que aguardamos ao relento a evolução do tal tremor de terra ainda nos sentidos, recorde-se, entre conversas de animação, lembrou-se de nos dar uma boa nova: ia criar coelhos para, mais tarde, nos dar uma arrozada! Mas tínhamos de o ajudar a dar de comer aos bichinhos, apanhando erva e labrestos para eles medrarem, até que chegasse à época dos exames e aí comermos tudo em grande refeição. Pois sim, nós que andávamos algo desconsolados das papilas gustativas, já que a comida do internato conventual não era grande coisa - mais parecia a que se ouvia contar aos tropas - ficamos todos entusiasmados e, apesar dos exames nos darem alguma ansiedade, desde logo passamos a desejar que chegasse depressa tal proximidade ao final do ano letivo.
Decorreram dias e noites a fio com a cabeça sempre a matutar naquilo, parecendo que víamos diante de nós pedaços de coelho a boiar num arroz apetitoso, quase a fugir pelo prato fora. Veio a Primavera e os dias a crescerem, de permeio com aquecimento da temperatura meteorológica e no estômago da rapaziada crescia água na boca. Até que chegou o dia, ao anoitecer. Foram postas mesas debaixo das árvores, duma das alamedas do espaço da feira regional que anualmente decorria na então nossa quinta (como dizíamos); e sob a fresca daquele fim de dia, enfim, houve lauto manjar. Não recordo já quantos coelhos eram, nem faço ideia, mas não mais esquece tudo aquilo. Num epílogo que até surpreendeu pois, deitada a comida aos pratos, tantos eram os comensais para a quantidade proporcional dos coelhos, tocou a cada um de nós um cibo só, um pequeno bocado a espreitar por entre o arroz aguado. Contudo, olhando para nosso amigo simpático, o ar feliz do Frei Domingos de Freitas Borges encheu-nos as medidas e saciou o apetite.
ARMANDO PINTO
NR
Texto enviado pelo Armando para o Boletim a ser editado para o Encontro.O título do blog é da nossa inteira responsabilidade.
A sua antecipada publicação, da nossa inteira responsabilidade, visa servir como motor emocional para aqueles que estejam mais indecisos em relação a rumarem até Fátima no proximo sábado!!!
antónio colaço